É preciso conhecer o vale dos mortos antes de fazer parte dele

Cemitério do Bonfim, necrópole mais antiga da capital, guarda histórias, segredos e, especialmente, um vasto número de obras de arte

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Atualizado no dia 8 de agosto de 2015

“A gente mal nasce e começa a morrer.” A frase da canção “Sei Lá”, dos compositores Vinicius de Moraes e Toquinho, serve para pensar na linha tênue que existe entre viver e morrer. Tão clara aos olhos, o fim da vida é quase esquecido na sociedade ocidental. Falar de morte (credo! Bata três vezes na madeira) é quase assunto proibido. Inclusive, não é à toa que existem inúmeros jargões para amenizar o peso que essa palavra traz. “Vestir pijama de madeira”, “bater as botas”, “partir desta para melhor”, “virar presunto” e “comer grama pela raiz” são só alguns desses exemplos.

Se só falar nesse assunto já provoca arrepios, imagina fazer uma visita, rondar diversos túmulos e ainda ouvir histórias em um cemitério, especialmente se tratando do lendário Bonfim? Pois é… Mas a experiência, além de não vir revestida de medo massacrante, ainda é enriquecedora no que diz respeito à história da capital mineira.

O cemitério do Bonfim, localizado na região noroeste da capital, está com a sua capacidade lotada. Mas ele não se tornou “inútil”. Muito pelo contrário. Por abrigar inúmeras obras, travestidas de túmulos e jazigos, o local se tornou mais um museu que uma localidade para receber corpos. Tanto é que já até existem visitas guiadas aos interessados em conhecer as histórias guardadas por trás dos muros do Bonfim.

“Tem coisas da história de BH no cemitério que nem imaginava que existia”. A fala é a da assistente administrativa Luana Antônia Constantino, 36 anos, que foi pela primeira vez no cemitério, em outubro deste ano, atraída pelas obras de arte que o cemitério abriga. “Lendo no Diário Oficial da União, descobri a visita guiada. Acredito que o cemitério guarda um grande valor histórico e artístico da cidade”, afirma.maiscemiterio
As visitas, realizadas uma vez por mês, são conduzidas pela doutora em História pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Marcelina Almeida. Ao longo da caminhada, ela vai contando histórias de desde construção do cemitério, passando pelas figuras importantes que ali estão enterradas até aquelas que permeiam o imaginário da população local, como a da Loira do Bonfim.

“A peculiaridade do cemitério é que ele é algo que não existe mais. Hoje, os cemitérios têm uma estrutura de parque, ou seja, não há grandes túmulos, os corpos são enterrados nas covas, onde são plantadas gramas por cima”, explica Marcelina. Até mesmo artesãos que faziam túmulos grandiosos são raros de se encontrar ou nem mesmo existem mais. “Hoje em dia, não se encontra mais quem faça esse tipo de trabalho”, garante Marcelina.

Mas o que hoje se transformou em um conjunto de obras de arte, outrora foi considerado um dos lugares mais conceituados para se ser enterrado, devido à sua tradição. Inaugurado em fevereiro de 1897, o Bonfim é mais antigo que capital mineira, fundada em dezembro do mesmo ano. O cemitério tem uma extensão de 172 m², ocupados por 54 quadras. Segundo dados fornecidos pela administração do Bonfim, do início deste ano, no local há 25 mil sepulturas, em que estão enterradas o mesmo número de corpos.
Os números, porém, não assustam a assistente de limpeza do cemitério Maria das Graças*, de 52 anos, que há desde seus 30 trabalha no local. “Tenho mais medo das pessoas que estão vivas! Quem está aqui não mexe comigo. É muito tranquilo”, comenta. A assistente também não vê diferença entre as sepulturas. “Para mim, os túmulos são todos iguais. Os donos do dinheiro estão enterrados no mesmo lugar que os pobres. Depois que morrem, todos se tornam iguais”, afirma Maria, completando que tem familiares que já passaram pelo cemitério. “Tenho três filhos e todos eles já trabalharam aqui”, diz.

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Personalidades

Como era de se esperar, o Bonfim abriga pessoas de destaque tanto político, quando religioso e econômico. Logo na entrada do cemitério, uma bela construção enche os olhos de quem a vê. Avaliada em 400 mil reais, o túmulo da família Falci, tradicional no ramo do comércio belo-horizontino, é uma das construções particulares mais caras do cemitério. A composição de quatro colunas e de quatro estátuas – a figura de Jesus Cristo que abençoa um homem trabalhando, e outra representa a Caridade, que dá esmola ao pobre – foi intencional. “Esse conjunto representa a erudição, o trabalho e a caridade. É essa a imagem que a família quer guardar como lembrança”, explica Marcelina.

As maiores obras, porém, são de governantes que estão lá enterrados. Ao todo, três personalidades políticas estão sepultadas nos chamados túmulos cívicos, onde, ninguém além deles, pode ser inumado. Na praça principal do Bonfim, está o túmulo do ex-prefeito de Belo Horizonte, que governou a cidade entre 1935 e 1938, Otacílio Negrão de Lima.

O jazigo que mais chama atenção, porém, é do governador mineiro que exerceu sua função entre 1922 e 1924, Raul Soares. Com aproximadamente 20 metros de altura, na sepultura estão imagens que representam a justiça, o amor pela pátria e pelos estudos, além de anjos que guardam o seu “altar de sacrifício”. Elementos religiosos e políticos se misturam na construção. O governante que ocupa o outro túmulo cívico é o vice de Raul Soares, Olegário Dias Maciel, que ocupou o cargo de governador até 1926. Novamente, elementos políticos e religiosos estão presentes em seu túmulo. Há neles imagens de santos e outra que representa a justiça.

Apesar de os serem grandiosos, os jazigos que mais recebem visitas não são os dos ex-governantes. “Aqui estão os túmulos do Padre Eustáquio e da Irmã  Benigna que, apesarem de os corpos não estarem mais aqui, já que a Igreja os retira quando há processo de beatificação, inúmeras pessoas vem visitá-los para pedir graças ou para agradecer alguma graça alcançada”, explica Marcelina, dizendo qual é o dia em que o cemitério recebe mais pessoas: “No Dia dos Finados, 2 de novembro. Vêm muita gente visitar os túmulos deles, além dos de familiares”.

No local do túmulo de Irmã Benigna, inclusive, há um local para se colocar pedidos, escritos em papeis, para a freirinha. Quase não já mais espaço, mas Marcelina, que sempre leva papel e caneta para os interessados em milagres, diz que se dá um jeito. “Agora é minha vez de agradecê-la por uma graça alcançada”, confidencia a guia turística.

Primeiro sepultamento

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O primeiro sepultamento do cemitério foi da jovem Berthe Adele Théreze de Jaegher, que morreu aos 20 anos, em fevereiro de 1897. Filha de um engenheiro belga que fazia parte da Comissão Construtora da Nova Capital, a causa de sua morte é desconhecida pelos historiadores, mas a tuberculose aparece como a primeira hipótese. Há pessoas que diziam que Berthe era uma jovem muito delicada e romântica, o que talvez explica o surgimento de uma árvore no local de seu sepultamento, que há mais de 110 anos divide o espaço com a jovem.

A loira do Bonfim

Os mineiros também são conhecidos por sua criatividade para criar histórias, mitos e lendas urbanas, e uma dessas é a da Loira do Bonfim. Uma história criada em Belo Horizonte nas décadas de 40 e 50 e que está inserida na história da capital mineira.

Há algumas versões para a lenda da Loira. Uma delas é que ela era uma mulher misteriosa, de pele clara, muito bonita e atraente e usava sempre branco. Ela saia todos os dias de madrugada  e ficava perambulando pelas ruas do bairro, até chegar na estação do bonde, onde entrava em um deles e ia até o centro da cidade.

Por sua beleza conquistava os homens e depois os convidava para acompanhá-la até sua casa. Os homens iam e quando chegavam, a surpresa, a casa dela era no cemitério do Bonfim. De lá saiam correndo assustados e com medo, e, em seguida a loira desaparecia.

Outra versão do fato é que a loira era o espírito de uma moça atropelada por um taxista em Belo Horizonte e que tinha sido enterrada no Bonfim. Traumatizada pela morte trágica ela andava pelo bairro e depois pegava algum táxi e pedia ao motorista para levá-la até sua casa. No caminho o seduzia e chamava para passar a noite com ela. Como ela era muito bonita todos aceitavam, mas quando chegavam no cemitério e viam onde ela morava saiam apavorados.
A lenda diz que essa loira, assombração, tirou, na época, o sossego do bairro e da região do Bonfim, dos homens e principalmente dos taxistas que andavam pela região do cemitério a noite.

*Maria das Graças é um nome fictício, pois a fonte não quis se revelar. 

Nota: Em respeito à família de Marlene dos Santos e depois de pedido feito pelo irmão dela, retirei do blog qualquer informação que diz respeito à falecida. 

Autores: Laura Maria, Mylena Lacerda e Mariana Menezes.

7 comentários sobre “É preciso conhecer o vale dos mortos antes de fazer parte dele

    • Olá, José! Eu já havia alterado essa informação. Devido ao seu pedido e em respeito à família de vocês, porém, retirei qualquer informação sobre ela. Favor verificar ao final do post a nota. Abraços!

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